O Carreiro Anselmo
- Detalhes
- By Cora Coralina
- Coletânea: Vintém de cobre
Meu avô, já velho, na Fazenda Paraíso,
tinha um carreiro de anos de serviço,
chamado Anselmo. Era ele que amansava os bois,
lidava com o carro e carretão, puxava e topejava as toras
e ajudava a rolar para a engrenagem da serra.
Cuidava do curral. Nem precisava chamar os bois.
Abria a tronqueira, entrava, os bois iam atrás.
Na hora de ligar ao carro, a junta da frente se postava parelha,
recebia a canga. Seguiam-se os bois do meio,
punham-se no lugar, eram encangados, certos,
aí vinham os do coice.
Anselmo trazia o cambão. As juntas abriam espaço,
o carreiro apresilhava, ligava os canzis, as barbelas,
verificava o eixo, azeitava o cocão.
O “aguiero” tomava da vara, o carreiro sacudia as argolinhas,
aviso do ferrão perto, o carro partia rechinando,
as juntas irmanadas puxando compassadas.
Também os cães. Era de ver a comunicação carinhosa
com a gente da fazenda.
A festa que faziam aos familiares que chegavam,
aos companheiros de caçada de meu avô…
Voltando ao carreiro, também no pasto o gado acompanhava
de manso suas voltas. Vacas que davam crias,
sabem os vaqueiros como fazem: escondem o bezerro,
defendendo de inimigos, seja o caracará, o gavião do pasto,
que costuma atacar com seu bico recurvo,
o umbigo vivo e sangrento do nascente.
Até mesmo as jaguatiricas famintas
pois, quando viam o vaqueiro, iam direto à moita e descobriam o bezerrinho.
Anselmo jogava no arção da cutuca e trazia para o curral.
O gado mansamente o acompanhava de chouto.
Este mesmo vaqueiro, veterano da Fazenda Paraíso,
que ali envelheceu tranquilo, manso,
partilhando daquela decadência irreversível,
vendo partir os moços, outros, moradores, procurando melhoras
mais longe, ali ficou até o final.
Depois da morte de meu avô, seu filho mais velho foi rever
o que restava.
Apalavrou a venda dos bois velhos, carro e carretão,
com açougueiros da cidade.
Mandou que Anselmo trouxesse os bois para a entrega no curral.
Aí, falou o velho vaqueiro: “Inhô, dá licença. Isso num tenho corage,
num faço não. Dá licença de’u tirá meus cacos e saí premero.”
No dia seguinte, o carreiro Anselmo desaparecia na volta da estrada,
com o bagulho da sua pobreza.
Os velhos bois foram entregues aos compradores.
A fazenda mudou de dono. E a vida continuou
com suas contradições e desacertos.