O Longínquo Cantar do Carro
- Detalhes
- By Cora Coralina
- Coletânea: Vintém de cobre
Dizia meu avô:
Quando as coisas ficam ruins,
é sinal de que o bom está perto.
O ruim está sempre abrindo passagem
para o bom.
O errado traz muita experiência
e o bom traz às vezes confusão:
“Nem sempre assim nem nunca pior”.
Meu avô conhecia todas as verdades
e gastava a filosofia de quem muito viveu
e aprendeu.
Quando as coisas não iam muito bem,
ele dizia: amanhã estará melhor.
E descia curvado para o seu engenho de serra.
Esse engenho de serra era uma engrenagem pesada e rústica
para o serviço pesadão de desdobrar imensas toras
que o carreiro Anselmo derrubava nas matas, abria caminho
e junto ao aguieiro Saturnino, providos, o homem e menino,
de força e jeito e mais levas e espeques, passavam para cima do carretão,
e por caminhos mal amanhados, conseguiam descarregar
na esplanada do engenho, e depois, topejadas, eram roladas
para os dentes da serra vertical,
movimentada por um rego-d’água, escachoante,
todo ladeado de avencas e samambaias.
Era aquela armação de força bruta dirigida milagrosamente
por meu avô e o seu velho compadre Honório,
que dominavam com experiência rotineira,
aquela monstruosidade a que se dava o nome pomposo
de Engenho de Serra.
Sei que dali partiam carradas de tábuas,
ripas, caibros e réguas linheiras para a cidade.
E não faltavam compradores, tudo no desvalor e preço
do tempo velho.
Carregar o carro, jungir os bois,
pegar na despensa da casa grande mantimento para a viagem,
– quatro dias ida e volta, receber a lista das encomendas,
levar bruacas de couro por cima do taboado com os presentes
que a fazenda oferecia a parentes,
era a rotina da vida no Paraíso e nós, jovens, ansiando já pela volta do carro,
cartas e jornais do Rio de Janeiro.
Minha mãe era assinante do “Paiz” e para nós vinham os romances
do Gabinete Literário Goiano.
Esperar a volta do carro, imaginar as coisas que viriam da cidade,
tomava a imaginação desocupada das meninas-moças.
Acostumei a ler jornais com a leitura do “Paiz”.
Colaboravam Carlos de Laet, Arthur Azevedo, Júlia Lopes de Almeida,
Carmem Dolores.
Meus primeiros escritinhos foram publicados no suplemento desse jornal.
Acompanhei, na sua leitura, fatos e acontecimentos universais.
O casamento de Afonso XIII com a princesa de Betenberg.
neta da rainha Vitória, um atentado anarquista,
uma bomba atirada no cortejo nupcial.
E mais todo o desenrolar da guerra russo-japonesa no começo deste século,
onde o Japão se revelou potência bélica, vencendo a Rússia.
Muitos meninos nascidos naquele tempo
tiveram o nome de Tôgo, o grande general japonês
A casa esperava o café. Regrava-se o sal na cozinha.
As mulheres dos moradores também esperavam suas encomendas.
Chita vistosa para vestidos, chinelos para dia santo e domingo.
Pente. Carrinho de linha, agulheiro, peça de algodão Americano.
Salamargo, riscado para camisa de homem. Metros de mescla barata
para o nu dos meninos, lenço ramado pra cabeça.
Alguma ferramenta para o serviço.
A “carrada” tinha que pagar toda esta bagaceira,
às vezes um saldo, mais vezes um “deve” no comércio
para acertar “da outra vez”.
Uma festa, apurar o ouvido ao longínquo cantar do carro,
avistado na distância, esperar as novidades que vinham:
cartas, livros e jornais.
Era uma vida para aquela mocidade despreocupada,
pobre e feita de sonhos.