Ninguém sabia porque. Ela tinha pegado nome de gente,
acrescido mais de dona. Era Dona Otília. Até os trabalhadores
que iam ao quarto dos arreios buscar qualquer pedaço de corda,
velhas ferramentas, achavam graça nela.
Sempre no seu canto, deitada ou especada,
cochilando ou de olho redondo e vivo, acomodada no seu canto.
Aconteceu sim, que aconteciam dessas coisas lá na
fazenda, vez por outra, uma galinha sadia e botadeira dava de ter suas dificuldades
de soltar naturalmente o ovo. Ficava pelos cantos do terreiro mal conformada,
tentando com o próprio esforço e ajuda da mãe natureza
sair da entalada.
Às vezes morriam, sumiam, pouca falta faziam. Eram tantas…
Cacarejantes, cristas vermelhas, alegres procurando os ninhos,
arrastando ternadas de pintos de todos os tamanhos,
chocando pelos matos, constantemente voltavam ao terreiro,
comboiando ternadas de pintos.
Quando não eram os galos que as traziam.
Galos cantores, bem empenados,
desses que cantavam até encostar o bico no chão.
Donos das madrugadas, respondendo a todos os poleiros do mundo,
dominavam com a sua plumagem, esporões e cristas vermelhas
o terreiro da fazenda.
Voltando às galinhas doentes, às vezes vinha socorro
quando Siá Balbina e Nicota davam pela coisa.
Elas traziam de olho a criação e entendiam das chocas.
Aplicavam seus remédios, diagnosticavam,
no entendimento que vinha da ignorância esclarecida pela prática.
Ovo atravessado. Caso às vezes complicado, ovo quebrado,
oveiro de fora, muito pior. Pegavam a galinha, facilmente,
sem mais possibilidade de fuga, levantavam pelas pernas,
davam uma sacudidelas de lá pra cá
debaixo para cima, num movimento de quem estivesse socando.
Era num instante, ovo pra fora e a galinha restaurada, solta,
meio estonteada, mas já aliviada.
Sim, que passava uns dias sem botar,
depois entrava na rotina, vermelha a cantarolar botando.
Não tão fácil a de ovo quebrado.
Com essa era a cirurgia mais complicada,
onde entrava azeite de mamona e a manobra dos dedos sábios
tirando de dentro as cascas do ovo quebrado, sabe-se lá por quê.
Recuperava-se, às vezes, e era condenada à panela,
ficava estéril, improdutiva.
Foi o que aconteceu com D. Otília.
Em observação, depois da penosa delivrance por conta
de Siá Balbina,
foi largada no quarto dos bagulhos. Pegado ao paiol
era morada tranquila de ratos abundantes, não faltando milho.
No canto mais discreto, sabiamente canto da porta,
acomodou-se a galinha operada. Ninguém mais se lembrou dela
sem esquecer que Siá Balbina proveu uma cuia d’água.
O tempo deu o seu giro, e muita coisa se passou na Fazenda,
entre donos, moradores e criação miúda.
E foi que certo dia, com admiração de todos, apareceu D. Otília
na porta do quarto, desceu mesmo o batente
e se especou contra o baldrame e ali ficou atenta,
vendo a galinhada, companheira,
catar as mancheias de milho que Siá Balbina atirava para os lados.
Foi geral o espanto. Até as companheiras de papo cheio,
na passagem para se abrirem pasto afora, paravam e segredavam
com ela, bico a bico. De certo se alegravam, se cumprimentavam entre elas.
Mesmo o galo carijó ao passar fez menção de arrastar
a asa. Foi um espanto. D. Otília deu de deixar o canto escuro do seu resguardo
e vir todos os dias se especar contra o baldrame,
tomando sol, participando, à sua moda.
Foi aceito que não teria destino de panela e ficasse de observação.
O terreiro reconheceu seus direitos à permanência.
O tempo ia passando e D. Otília deu de cantarolar e mudar de cores.
Plumagem nova, crista e barbelinhas vermelhas,
olhinhos vivos, orelhinhas brancas,
era dessa nação de galinha carijó de orelhas brancas.
Siá Balbina assuntando, às vezes resmungando, se benzendo.
Siá Nicota, segredando com Siá Balbina, sacudia a cabeça descrente.
Aconteceu que depois de um sumiço de que foi novamente esquecida,
num dia de sol, D. Otília aflorou na porta do paiol,
especada no baldrame, toda compenetrada, chamando choco
e com uma réstia de pintos pretos de pontinha de asa branca,
tirando para empenados carijós.
Siá Balbina conversou com a Nicota: “Num falei Nicota…
Suncê perdeu a aposta, tudo raça do galo carijó.
O sem-vergonha que não respeita nem galinha doente.”
Ao que retrucou a Nicota:
“Foi bão, Bá. Deixou ela sadia.”