
Adélia Prado
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Pelo sinal da Santa Cruz, chegue até Vós meu ventre dilatado e Vos comova, Senhor, meu mal sem cura. Inauguro o dia, eu que a meu crédito explico que passei em claro a treva da noite. Escutei — e é qu...
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Antigamente, em maio, eu virava anjo. A mãe me punha o vestido, as asas, me encalcava a coroa na cabeça e encomendava: ‘Canta alto, espevita as palavras bem’. Eu levantava vôo rua acima
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Quando se passam alguns dias e o vento balança as placas numeradas na cabeceira das covas e bate um calor amarelo sobre inscrições e lápides, e quando se olha os retratos e se consegue dizer com límpi...
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Desejo, como quem sente fome ou sede, um caminho de areia margeado de boninas, onde só cabem a bicicleta e seu dono. Desejo, como uma funda saudade de homem ficado órfão pequenino, um regaço e o acala...
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Depois da morte eu quero tudo o que seu vácuo abrupto fixou na minha alma. Quero os contornos desta matéria imóvel de lembrança, desencantados deste espaço rígido. Como antes, o jeito próprio de puxar...
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O pai cavando o chão mostrou pra nós, com o olho da enxada, o bicho bobo, a cobra de duas cabeças. Saía dele o cheiro de óleo e graxa, cheiro suor de oficina, o brabo cheiro bom. Nós tínhamos comido a...
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O amarelo faz decorrer de si os mamões e sua polpa, o amarelo furável. Ao meio-dia as abelhas, o doce ferrão e o mel. Os ovos todos e seu núcleo, o óvulo. Este, dentro, o minúsculo. Da negritude das v...
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Eu já tive e perdi uma casa, um jardim, uma soleira, uma porta, um caixão de janela com um perfil. Eu sabia uma modinha e não sei mais. Quando a vida dá folga, pego a querer a soleira, o portal, o jar...
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Uma noite de lua pálida e gerânios ele virá com a boca e mão incríveis tocar flauta no jardin. Estou no começo do meu desespero e só vejo dois caminhos: ou viro doida ou santa. Eu que rejeito e exprob...
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De noite no mato as árvores semelhavam uma águia acabada de pousar, um anjo saudando, um galo perfeitinho, uma ave grande vista de frente. De noite no mato, as vivas figuras enraizadas, prontas a fala...
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As cigarras começaram de novo, brutas e brutas. Nem um pouco delicadas as cigarras são. Esguicham atarraxadas nos troncos o vidro moído de seus peitos, todo ele — chamado — canto cinzento-seco, garra...
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Ao entardecer no mato, a casa entre bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo, aparece dourada. Dentro dela, agachados, na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo, rápidos como se fossem ao Êxo...
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Hoje acordei normal, como antes de fazer treze anos. Fui cedo catar coisas no lixo, cavucar abacaxis apodrecidos, atrás de um veio são, como quem cata ouro. Que tem isso tudo a ver com santidade? Mas...
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Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora. Quando se pôde abrir as janelas, as poças tremiam com os últimos pingos. Minha mãe, como quem sabe qu...
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A prima hábil, com tesoura e papel, pariu a mágica: emendadas, brincando de roda, ‘as neguinhas da Guiné’. Minha alma, do sortilégio do brinquedo, garimpou: eu podia viver sem nenhum susto. A vida se...
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As formigas passeiam na parede, perto de um vidro de cola que perdeu a rolha. Há mais: um maço de jornais, uma bilha e seu gargalo fálico, um copo de plástico laranjado e um quiabo seco, guardado ali...
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A chama do meu amor faz arder minhas vestes. É uma canção tão bonita o crepitar que minha mãe se consola, meu pai me entende sem perguntas e o rei fica tão surpreendido que decide em meu favor uma rev...
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Entre paciência e fama quero as duas, pra envelhecer vergada de motivos. Imito o andar das velhas de cadeiras duras e se me surpreendem, explico cheia de verdade: tô ensaiando. Ninguém acredita e eu g...
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Amor é a coisa mais alegre amor é a coisa mais triste amor é coisa que mais quero. Por causa dele falo palavras como lanças. Amor é a coisa mais alegre amor é a coisa mais triste Amor é coisa que mais...
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Quando o homem que ia casar comigo chegou a primeira vez na minha casa, eu estava saindo do banheiro, devastada de angelismo e carência. Mesmo assim, ele me olhou com olhos admirados e segurou minha m...
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Da belíssima «Ode à noite antiga» resulta que eu entendo, limpo de esforço e vaidade, se nos fosse possível: da oração verdadeira nasce a força. Ninguém se cansa de bondade e avencas. Os rebanhos guar...
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Eu procuro o mais triste, o que encontrado nunca mais perderei, porque vai me seguir mais fiel que um cachorro, o fantasma de um cachorro, a tristeza sem verbo. Eu tenho três escolhas: na primeira, um...
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Ah, pois, no conforme miro e vejo, o por dentro de mim, Segundo o consentir dos desarrazoados meus pensares, é o brabo cavalo em as ventas arfando, se querendo ir, permanecido apenas no ajuste das lei...
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Se o que está prometido é a carne incorruptível, é isso mesmo que eu quero, disse e acrescentou: mais o sol numa tarde com tanajuras, o vestido amarelo com desenhos semelhando urubus, um par de asas e...
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Mais que a amargosa pétala mastigada, seu aspro odor e seiva azeda, a lembrança antiga das camadas do sono: há muito tempo, foi depois da missa, eu e mais duas tias num caminho, as pernas delas na fre...
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Acordei meu bem pra lhe contar um sonho: Sem apoio de mesa ou jarro eram as buganvílias brancas destacadas de um escudo. Não fosforescia nem cheirava nem eram alvas. Eram brancas no ramo, brancas de l...
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As pétalas da flor-seca, a sempre-viva, do que mais gosto em flor. Do seu grego existir de boniteza, sua certa alegria. É preciso ter morrido uma vez e desejado o que sobre as lápides está escrito de...
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Ave, ávido. Ave, fome incansável e boca enorme, come. Da parte do Altíssimo te concedo que não descansarás e tudo te ferirá de morte: o lixo, a catedral e a forma das mãos. Ave, cheio de dor.
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Depois de morrer, ressuscitou e me apareceu em sonhos muitas vezes. A mesma cara sem sombras, os graves da fala em cantos, as palavras sem pressa, inalterada, a qualidade do sangue, inflamável como o...
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Foi assim que meu pai me disse uma vez: ‘Você anda feito cavalo velho, procurando grota’. As cigarras atrelavam as patas nos troncos e zuniam com decisão os seus chiados. As árvores cantavam no quinta...
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Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo: ‘Coitado, até essa hora no serviço pes...
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Quem está vivo diz: hoje às três horas padre Libério dá a bênção na Vila Vicentina. Ou assim: coisa boa é um banho. Ou ainda: casamento é coisa muito fina. Eu achei tanta graça quando aprendi a dar nó...
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Queria mais um amor. Escrevi cartas, remeti pelo correio a copa de uma árvore, pardais comendo no pé um mamão maduro — coisas que não dou a qualquer pessoa — e mais que tudo, taquicardias, um jeito de...
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Veio o câncer no fígado, veio o homem pulando da cama no chão e andando de gatinhas, gritando: ‘me deixa, gente, me deixa’, tanta era sua dor sem remédio. Veio a morte e nesta hora H, a camisa sem bot...
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Quando a noite vier e minh’alma ciclotímica afundar nos desvãos da água sem porto, salva-me. Quando a morte vier, salva-me do meu medo, do meu frio, salva-me, ó dura mão de deus com seu chicote, ó pal...
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Vamos dormir juntos, meu bem, sem sérias patologias. Meu amor este ar tristonho que eu faço pra te afligir, um par de fronhas antigas onde eu bordei nossos nomes com ponto cheio de suspiros.
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Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos. Não é hábito. É rarissimamente que ela dói. Ninguém tem culpa. Meu pai. Minha mãe descasaram seus fardos, não existe mais modo de eles terem seus olhos sobre mi...
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Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o ‘do’, o ‘aliás’, o ‘o’, o ‘porém’ e o ‘que’, esta incompreensível muleta...
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Ele tinha um modo de falar a palavra inabalável. O ‘l’ final concluído à moda dos holandeses que pregaram pra nós, catecismo, missões, missas dominicais. ‘Inabalável certeza’, ‘ inabalável fé’, ‘poder...
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Quando minha irmã morreu eu chorei muito e me consolei depressa. Tinha um vestido novo e moitas no quintal onde eu ia existir. Quando minha mãe morreu, me consolei mais lento. Tinha uma perturbação re...
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Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia, sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia. Faço comida e como. Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro e atiro os restos. Quando dói, grito ai,...
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As três irmãs conversavam em binário lentíssimo. A mais nova disse: tenho um abafamento aqui, e pôs a mão no peito. A do meio disse: sei fazer umas rosquinhas. A mais velha disse: faço quarenta anos,...
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É teu destino, ó José, a esta hora da tarde, se encostar na parede, as mãos para trás. Teu paletó abotoado de outro frio te guarda, enfeita com três botões tua paciência dura. A mulher que tens, tão h...
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Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava o cabelos para trás, a mulher falou alto: é isto, eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de nossas extraordinárias semelh...
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O amor me fere é debaixo do braço, de um vão entre as costelas. Atinge o meu coração é por esta via inclinada. Eu ponho o amor no pilão com cinza e grão de roxo e soco. Macero ele, faço dele cataplasm...
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O ovo não cabe em si, túrgido de promessa, A natureza morta palpitante. Branco tão frágil guarda um sol ocluso O que vai viver, espera.
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Olhou para o teto, a telha parecia um quadrado de doce. Ah! — falou sem se dar conta que descobria, durando desde a infância, aquela hora do dia, mais um galo cantando, um corte de trator, as três cam...
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Para o homem com a flauta, sua boca e mãos, eu fico calada. Me viro em dócil, sábia de fazer com veludos uma caixa. O homem com a flauta é meu susto pênsil que nunca vou explicar, porque flauta é flau...
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Era uma vez uma venta fremente e um duro queixo. Era uma vez um pisado de levantar pedra e poeira. O que chamam de morte devastou com as narinas, o maxilar, o dorso dos pés e sua planta. Sobrou um ges...
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Uma ocasião, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo.
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Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem preci...
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De dentro da geometria Deus me olha e me causa terror. Faz descer sobra mim o íncubo hemiplégico. Eu chamo por minha mãe, me escondo atrás da porta, onde meu pai pendura sua camisa suja, bebo água doc...
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Te espero desde o acre-mel de marimbondos da minha juventude. Desde quando falei, vou ser cruzado, acompanhar bandeiras, ser Maria Bonita no bando de Lampião, Anita ou Joana, desde as brutalidades da...
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As coisas tristíssimas, o rolomag, o teste de Cooper, a mole carne tremente entre as coxas, vão desaparecer quando soar a trombeta. Levantaremos como deuses, com a beleza das coisas que nunca pecaram,...
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A meu amado secreto, Castro Alves. Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio. Vê estas olheiras dramáticas, este poema roubado: «o cinamomo floresce em frente ao teu postigo. Cada flor murcha que des...
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Encontrei meu marido às três horas da tarde com uma loura oxidada. Tomavam um guaraná e riam, os desavergonhados. Ataquei-os por trás com mão e palavras que nunca suspeitei conhecer. Voaram três dente...
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Viola violeta violenta violada, óbvia vertigem caos tão claro, claustro. Lápides quentes sobre restos podres, um resto de café na xícara e mosca.
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Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento.
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Cesse de uma vez meu vão desejo de que o poema sirva a todas as fomes. Um jogador de futebol chegou mesmo a declarar: «Tenho birra de que me chamem de intelectual, sou um homem como todos os outros»....
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Na minha cidade, nos domingos de tarde, as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas. Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta, a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas: Daqui a muito...
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Quero comer não, mãe (no canto do fogão o caldeirão esmaltado) quero comer não, mãe (arroz com feijão, macarrão grosso) quero comer não, mãe (sem massa de tomate) quero comer não, mãe (com gosto de se...
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Eu quero amor feinho. Amor feinho não olha um pro outro. Uma vez encontrado é igual fé, não teologa mais. Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo e filhos tem os quantos haja. Tudo que nã...
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Ô estrela dalva, ô lua... Tristeza é o luar nos ermos do sertão, minas gerais. Eh saudade! De quê, meu Deus? Não sei mais. Ô estrela dalva, Ô lua... O escuro é duro ou macio? meu cavalo perguntou. Eu...
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Ele me amava, mas não tinha dote, só os cabelos pretíssimos e um beleza de príncipe de estórias encantadas. Não tem importância, falou a meu pai, se é só por isto, espere. Foi-se com uma bandeira e aj...