Hélas! et l’on sentait de moment en moment,
sous cette voute sombre,
quelque chose de grand, de saint et de charmant,
s’évanouir dans l’ombre
Victor Hugo – Les chants du crépuscule.
Numa atitude augusta e desolada,
dessas que têm as lúgubres taperas,
surge a pequena ermida abandonada,
entre tufos de musgo e festões de heras,
ao pé da estrada.
Geme nos perros quícios o lamento
da velha porta má que já declina.
Fora de horas, à noite, a voz do vento
esfuzia nas fendas da ruína
em triste acento.
Homens do povo e gentes das fazendas,
atravessando os próximos caminhos,
contam as aventuras mais horrendas
de confabulações e burburinhos
entre estas fendas.
E, todavia, esta ruína irroga
recolhimento à vossa piedade.
Aí a vida apenas epiloga
toda a beleza da transata idade;
e monologa:
A PORTA
Assim viver, assim carpir, assim
morrer, decerto é sina bem ruim,
quando passamos toda a execratória
vida fugaz, sem explosões de glória,
numa capela vil, desconhecida,
entre o cordão das árvores perdida.
Em tanto, outrora, ao largo das campinas
vinham correndo as turbas peregrinas
também trazer-me bênçãos e oblações...
A CRUZ
Reinava então a paz nos corações,
e eu, que a via do céu lhes apontava,
os bálsamos da fé lhes instilava
e lhes abria a linha dos meus braços...
mas veio o raio, e fê-los estilhaços!
A PORTA
Esta carcoma da melancolia
vai-me corroendo aos poucos, dia a dia.
A CRUZ
Sou vil madeiro: e nisto se reduz
o destino misérrimo da cruz!
O PEQUENO SINO
Das minhas vozes às toadas
metálicas, argentinas,
ficavam de luz coalhadas
as planícies e as campinas.
Eu tinha o indizível dom
de fazer brotar a aurora
entre as cascatas do som
da minha torre sonora;
o éter lúcido vibrando,
toda esta ermida vibrava,
e dos pássaros o bando
pela manhã despertava.
Devera ser belo ver-me
pendente de sob a trave,
pequenino como um verme,
como um pássaro suave.
Que saudade me lacera
daquelas tardes serenas
em que ria a primavera
na boca das açucenas!
E tristemente, entretanto,
fendido, imprestável, só,
eis-me abandonado a um canto,
meio enterrado no pó!
O CRUCIFIXO
Eu fui o casto e pálido rabino
de Getsêmani e de Genesaré.
Tinha na chama astral do olhar divino
todas unções balsâmicas da fé.
Entregue às árduas lides da ciência
e à anatomia interna das paixões,
Eu consumi maior parte da existência
nas romarias e meditações.
Como um vidente ou como iluminado,
entre as remotas gentes eu passava,
e ao meu destino empírico e sagrado
as multidões e as tribos exortava;
tinha na voz as atrações do amor,
e um amorável riso de bondade;
a minha fronte austera em derredor
irradiava uma ignota claridade.
Não sei que luz brilhava em meu semblante
e, estrelejando o meu olhar, sorria
numa expansão olímpica e radiante,
mista de sombra e de melancolia.
Entre os salgueiros bíblicos passeando
a vacilante túnica talar,
eu me deixava, a sós, monologando
desde o deitar-se até o sol raiar;
vinham correndo os búfalos suarentos
e a passo frouxo os tardos dromedários;
um albornoz os píncaros nevoento
cobria, à tarde, aos montes solitários;
contemplando a paisagem cismadora,
sentindo o aroma erótico das rosas,
subjugava-me a fronte sonhadora
a poesia harmônica das coisas:
eu tinha, então, palavras soberanas
e as explosões patéticas mais ternas,
e aos pegureiros e às samaritanas
eu perorava à boca das cisternas;
minha atitude augusta de Messias
– o rosto aberto, o meu olhar sereno –
mais consagrava as minhas profecias,
mais endeusava o grave nazareno.
E foi assim que me fiz deus, e rei
dos desgraçados povos da Judeia.
Sobre os destroços de Moisés plantei
a nova e rubra flâmula da Ideia.
Aos pés o mundo inteiro prosternou-se
do grande deus católico romano,
e a sua ideia universal tornou-se,
tornou-se um norte ao pensamento humano!
Hoje – ai de mim! – todo o passado é morto:
o meu triunfo efêmero não dura...
E eis-me outra vez, como Jesus no Horto,
bebendo, à noite, o cálix da amargura!
O PÚLPITO
Ninguém nos ouve, e vós vos lamentais!
Por que queixar-vos, e por que chorais!
Neste funéreo e tácito recinto
desfez-se tudo, tudo jaz extinto,
para que as vossas dores externeis.
Inutilmente vos lamentareis,
pois que esse fundo e antigo sofrimento
só acha um eco no meu desalento.
Lágrimas? Não as verto. Nem eu choro
nem meu destino aspérrimo deploro;
e bem sabeis que eu deplorar devera
a amiga voz que esta capela enchera
de luz, de vida, de fulgor, de som...
O ALTAR
Era um tribuno encanecido e bom
que às multidões atentas declamava.
O PÚLPITO
Pois bem: em vez daquele que animava
Este recinto – irônica heresia! –
a estrige horrenda unicamente pia!
O ALTAR
Que importa, pois, que aqui nos lamentemos?
A ERMIDA
Calai-vos, pois.
A CRUZ
Calemos, pois.
O PÚLPITO
Calemos
***
Em sombra imerso o púlpito calou-se.
Tristeza tumular de frias lousas!
Como é sombria, como é grande e doce
essa mudez nostálgica das coisas!
***
Fora, entretanto, o bosque embalsamado
desperta à luz da esplendida manhã,
e as andorinhas cantam no telhado
numa alegria herética e pagã...