(Lenda do báltico, transplantada para Portugal)

Ignota lenda astral da Bem-Aventurança,
Já não há sobre a terra o que eu chamo esperança.
José Severiano de Rezende

De mon espoir je suis la tombe...
Espoir! O tomebe de ma vie!
Jacques D'Avray

Dona Guiomar tombou de giolhos,
– Dobravam tôdolos sinos –
E no horizonte dos seus olhos
Dois Anjos cantaram hinos.

As mãos em cruz, a alma petrina
Suspendendo os alvos peitos...
Que amargura quase divina
Nos seus olhos contrafeitos!

Era no tempo em que a mourama
Dominava a Portugal.
Como rezaste, nobre Dama,
Nessa noite de Natal...

“Senhor meu Deus onipotente,
Ouvide a voz de uma louca...”
(Bem se via que uma alma crente
Te soluçava na boca).

“A Catedral que vos levanto
É feita de pedra e cal...
Senhor Deus, que eu exista enquanto
Existir a Catedral!”

Foram palavras céu arriba,
Clamaram no mar profundo...
Ouviu-las Deus, e um velho escriba
Anotou-as cá no mundo.

E mesterais dos mais valentes
Vão começando o trabalho:
Qual quebra as pedras em torrentes,
Qual as prepara com o malho.

Tamanho esforço sobre-humano
Põe de pé a Catedral,
E já passara mais um ano,
E outra noite de Natal.

Não têm mais conta os dobrões de oiro
Que a nobre Dama gastou na Igreja.
Fosse embora mais de um tesoiro,
Eis acabada a peleja.

Dona Guiomar está contente,
Toda ledice na face,
Por não morrer ri-se da gente...
Não houve quem lá invejasse.

Passaram muitos longos dias,
Meses, anos afinal.
Quantas pungentes agonias
Desde a noite de Natal!

E fica velha a nobre Dama,
Toda cheia de cansaço...
Não se levanta mais da cama,
Nem pode dar mais um passo.

Lastima o tempo em que era forte,
Benfadada e benquerida.
Só reza agora, pede a morte,
Só por ter eterna vida.

Como o Senhor há de ouvi-la,
Se não tomba a Catedral?
– Dorme, Fidalga, bem tranquila,
Que não tem cura o teu mal.

E para ela um caixão foi feito:
E nele o corpo deitando,
Dona Guiomar, com as mãos ao peito,
Pôs-se esperando, esperando...

Séculos passam no infinito,
E ela está sempre deitada,
Sem um gemido, sem um grito,
Dos olhos fitos sem ver nada.

Junto à Dama quase-defunta
Reza um padre no Natal,
Dona Guiomar então pergunta
Se tombou a Catedral...